Atendendo a algumas respostas apreciativas e inúmeras ignorativas, aqui está......

05 janeiro 2011

O axioma fundamental do trânsito

Por trás de todos os problemas de transporte numa grande cidade está o "Axioma fundamental do trânsito", que ninguém parece contestar, nem mesmo saber que existe ou que as coisas poderiam ser diferentes. Em todos os traçados urbanos a via dos automóveis é contínua, enquanto a calçada desaparece nos pontos em que o pedestre precisa atravessar o caminho dos automóveis. O mesmo se dá com ciclovias em relação às "ruas" - a própria terminologia já indica a concepção de que a rua é do carro, o resto vem depois.

Uma vez explicitando o axioma fundamental do transporte urbano, fica fácil de ver que ele está errado. O correto seria o contrário. As calçadas deveriam ser contínuas, de forma que o automóvel teria que atravessar a calçada para passar de um quarteirão a outro. Onde houver ciclovia, a rua dos carros teria uma descontinuidade extra no cruzamento com a ciclovia. O ciclista por sua vez teria que atravessar a calçada do pedestre para ir de um quarteirão ao outro.

Isso aumentaria a velocidade e segurança do transporte a pé, consequentemente favorecendo o transporte público e diminuindo problemas urbanos e sociais. É incrível como uma hipótese geométrica tão simples e tão obviamente indesejável pode perdurar por tanto tempo sem ser contestada, apesar de causar tantos problemas urbanos, sociais, e ambientais.

(Post motivado por uma discussão no grupo da Poli no Linkedin.)

Vamos formalizar, para o caso sem ciclovias por simplicidade.

Definições: Rua é a via pelo qual se movem os automóveis. Calçada é a via pelo qual se movem os pedestres.

Axioma fundamental do trânsito: O conjunto das ruas formam uma via conexa.

Axioma fundamental do trânsito, versão 2: O conjunto das calçadas possui descontinuidades.

Teorema: O pedestre deve atravessar a rua para chegar de um quarteirão ao outro.

Lição de casa: Provar a equivalência das 2 versões do axioma e mostrar o teorema acima.

São conhecidas 2 contra-exemplos, para os quais o axioma não é válido. Primeira, na entrada de garagens. Isso não contradiz as hipóteses, apenas exige que a definição de rua não inclua estacionamentos subterrâneos. Porém note que a maioria dos estacionamentos ao ar livre, bem como postos de gasolina, podem ser considerados como ruas sem violar as hipóteses.

O segundo contra exemplo ficava no subúrbio de Copenhagen, mas acho que eles mudaram para um sistema mais convencional com ruas sem saída. Vou buscar me informar.

11 comentários:

Anônimo disse...

um dos resultados de sua nova premissa é a ineficiencia energetica: o desperdicio da energia cinética (posso dizer isso?) de carros e de bicicletas.

parar um pedestre é muito menos dispendioso do que parar um automovel.

isso pode explicar porque a hipotese perdurou tanto tempo sem ser contestada.

e tambem porque hoje em dia estao tentando minimizar essa perda de energia por inovacoes tecnologicas.

abs
sgold

Felipe Pait disse...

Sgold,
Vários pontos do seu argumento estão abertos a questões: quanta energia extra seria gasta por um carro subindo e descendo uma calçada, ou parando e andando; quanta dessa energia poderia ser recuperada de forma eficiente; de que forma a consideração sobre outros veículos tais como cavalos, bicicletas, e cadeiras de rodas mudaria a equação....

De qualquer modo a explicação econômica me parece uma justificativa a posteriori que não explica muito. Se fosse uma decisão racional, outras alternativas teriam sido analisadas e comparadas. Provavelmente a escolha vem de decisões tomadas no tempo dos veículos com tração animal, que se eternizou por conta de falta de imaginação dos projetos urbanos. Tem mais relação com fatos históricos do que com análise econômica racional.

Humberto Stein Shiromoto disse...

Vale a pena considerar um caso:

Considere um cruzamento de duas ruas, R1 e R2, que formam um ângulo reto. Chamado, aqui, de cruzamento ideal.

Fato 1) Quando o semáforo está fechado, na R1, o pedestre pode atravessas livremente de um lado para o outro da rua e idem para R2.

Fato 2) Um dos semáforos está sempre fechado, quando o outro está aberto.

Fato 3) Quando um dos semáforos está amarelo, o outro informa ao pedestre para não atravessar pois irá abrir.

Conclusão: em caso de um cruzamento ideal, o conjunto das calçadas é ser localmente conexo.

Felipe Pait disse...

Esse caso considera um cruzamento variante no tempo, no qual a "rua" se torna "calçada" quando o sinal está aberto para pedestres. É uma forma diferente de encarar. Não muda o fato que o pedestre atravessa a rua, que é conexa, enquanto o carro não precisa atravessar a calçada, que portanto é desconexa.

O fato 2) não está correto. O farol de pedestres só abre quando ambos os semáforos para carros na2 R1 e R2 estão vermelhos.

Anônimo disse...

vc tem razao, a explicacao antropologica (funcionalista) é provavelmente mais convincente do que a explicacao economica (racionalista).

nao era voce que estava questionando a antropologia em outro tweet...

abs
sgold

Anônimo disse...

vc tem razao, a explicacao antropologica (funcionalista) é provavelmente mais convincente do que a explicacao economica (racionalista).

nao era voce que estava questionando a antropologia em outro tweet...

abs
sgold

Felipe Pait disse...

Porque "funcionalista"?

Não estava contestando a antropologia. Só retweetando que os antropólogos americanos estão considerando desistir de tentar virar ciência. Se lembro bem, o post original mostrava que a antropologia brasileira não sofre do mesmo dilema, considera-se uma ciência mesmo sendo menos "científica" (no sentido de usar métodos típicos da física, que funciona como ciência-modelo) do que a americana.

Daí fico mais com a brasileira.

Felipe Pait disse...

Um exemplo de calçada conexa e rua desconexa pode ser visto no cruzamento entre Dyssegårdsvej e Højsgårds Alle em Hellerup, um subúrbio de København: http://maps.google.com/maps?client=safari&rls=en-us&q=Dyssegårdsvej/Højsgårds+Alle&oe=UTF-8&um=1&ie=UTF-8&sa=N&hl=en&tab=wl

Um carro na Højsgards Alle para atravessar a Dyssegårdsvej precisa subir na calçada de paralelepípedos. Idem um carro virando à direita ou esquerda. Há também faixa de bicicleta.

A calçada não é conexa porém: para chegar de um lado ao outro da Dyssegårdsvej, uma rua mais movimentada, o pedestre precisa "atravessar a rua" dos carros. Parece um compromisso razoável, que ilustra a discussão topológica acima e demonstra a falta de reflexão dos projetos urbanos habituais.

Anônimo disse...

por que funcionalista?

porque sua explicacao é do tipo: (ainda hoje) é assim porque (antigamente) funcionava para aquilo. e por algum motivo (razoavel ou por tradicao), nao evoluiu de forma diferente.

é um tipo de explicacao que transforma o efeito em causa. as ruas permitiram o trafego das carruagens. esse é o efeito. o trafego das carruagens é a causa das ruas ainda hoje.

é um tipo de explicacao que nao parte da escolha racional do agente individual. (senao seria microeconomia).

antropologos, especialmente malinowski, era funcionalista.

agora, se antropologia é ciencia ou nao, me parece um debate inutil.

importa mais saber se ela serve para alguma coisa. se é ciencia ou nao, é mesmo importante? (a nao ser para definir criterio de apreciacao).

abs
sgold

Felipe Pait disse...

Agora sei o que é "funcionalista". O nome não é muito descritivo, né?

Quanto à antropologia, concordo. Classificar o que é ciência, o que não é, é inútil, e pouco científico. Mas dizer "não somos mais ciência nem queremos ser" é mais mixuruco ainda.

Luiz Dranger disse...

Felipe,
Cara, anos !!!!!!!! Agora há pouco, estava revendo meus comentários em blogs e vi o seu que não respondi. Sorry. Vou ler o seu blog com mais calma, mas já vi que vc milita no espaço. Tenho com o Arturo um site www.escoladebicicleta.com.br . Vamos nos falar 3711-3570. Me liga quando puder. Vou botar o blog na minha lista. Abração, Luiz